Atualmente, mais de 50.000 brasileiros aguardam na fila por uma doação de órgãos que pode salvar suas vidas. A cada dia, aproximadamente 12 pessoas morrem esperando por um transplante no Brasil.
Portanto, entender como funciona a doação de órgãos é fundamental não apenas para quem deseja ser um doador, mas também para conscientizar familiares sobre essa decisão tão importante. Um único doador pode beneficiar até oito pessoas diferentes, transformando completamente suas histórias.
Além disso, mesmo com todo o avanço da medicina moderna, a doação de órgãos ainda depende essencialmente da solidariedade das pessoas. Neste guia completo, você vai aprender tudo sobre o processo de doação de órgãos no Brasil, desde os requisitos básicos até os procedimentos legais necessários.
Como funciona a doação de órgãos no Brasil
A doação de órgãos no Brasil constitui um processo estruturado que envolve múltiplas etapas e instituições. Diferentemente de outros países, o sistema brasileiro possui características próprias que determinam como os órgãos são doados, captados e distribuídos para quem necessita.
O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) representa a instituição central na coordenação de todos os procedimentos relacionados à doação de órgãos no país. Criado pelo Ministério da Saúde, o SNT é responsável pela regulamentação, controle e monitoramento de todo o processo de doação e transplante. Este sistema coordena a maior estrutura pública de transplantes do mundo, onde aproximadamente 87% dos procedimentos são realizados com recursos públicos.
O SNT gerencia a Lista Única de espera por órgãos, garantindo a distribuição justa e transparente dos órgãos disponíveis. Ademais, esta lista é organizada por estado ou região e monitorada por órgãos de controle federais, impossibilitando que uma pessoa seja registrada em mais de uma lista.
As Organizações de Procura de Órgãos (OPO) funcionam em conjunto com o SNT e com as Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante, identificando potenciais doadores e viabilizando o processo em determinadas regiões geográficas. Atualmente, existem cerca de 400 equipes médicas cadastradas pelo país para realizar transplantes.
Quem pode doar: vivo ou falecido
No Brasil, existem duas categorias de doadores: vivos e falecidos. Os doadores vivos devem ser maiores de 21 anos, juridicamente capazes e com boas condições de saúde. A doação em vida só ocorre se o procedimento não comprometer as aptidões vitais do doador.
Os doadores vivos podem doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte dos pulmões. No entanto, a doação entre cônjuges ou parentes até quarto grau com compatibilidade sanguínea é permitida sem restrições, enquanto para não familiares, a doação só acontece mediante autorização judicial.
Quanto aos doadores falecidos, existem dois tipos:
Doadores após morte encefálica: quando ocorre a interrupção irreversível das funções cerebrais, podendo doar coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córneas e outros tecidos.
Doadores por parada cardiorrespiratória: quando a morte é constatada por critérios cardiorrespiratórios, permitindo apenas a doação de tecidos como córneas, pele e ossos.
Contrariamente ao que muitos pensam, não existe restrição absoluta para a doação de órgãos. Entretanto, o potencial doador passa por avaliações considerando idade, diagnóstico que levou à morte e tipo sanguíneo.
Órgãos e tecidos que podem ser doados
De um único doador, podem ser obtidos diversos órgãos e tecidos, beneficiando múltiplas pessoas. Consequentemente, um doador após morte encefálica pode salvar mais de vinte pessoas.
Os principais órgãos que podem ser doados são:
Órgãos sólidos: rins, coração, pulmões, fígado, pâncreas e intestino
Tecidos: córneas, pele, ossos, tendões, válvulas cardíacas, cartilagem e medula óssea
No Brasil, os rins e o fígado são os órgãos mais doados para transplante. Os rins podem ser doados tanto por pessoas vivas quanto após o falecimento, sendo uma opção eficaz para pacientes com doença renal crônica.
Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos. A taxa de doação brasileira não alcançou 20 doadores para cada milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha registram cerca de 40 por milhão. Além disso, de cada oito potenciais doadores, apenas um é notificado.
Um fator crucial que diferencia o processo brasileiro é a decisão familiar. No Brasil, mesmo que uma pessoa manifeste em vida o desejo de ser doadora, a palavra final sobre a doação cabe sempre à família . Portanto, comunicar aos familiares a vontade de ser doador é fundamental para garantir que este desejo seja respeitado.
Etapas do processo de doação após a morte
O processo de doação após a morte segue uma sequência específica de etapas que garantem transparência e segurança em todo o procedimento. Essa jornada se inicia com a identificação de um potencial doador e culmina com o transporte dos órgãos para os receptores, passando por várias fases cruciais para o sucesso do transplante.
Identificação do potencial doador
A identificação do potencial doador é o ponto inicial de todo o processo. Os potenciais doadores geralmente são encontrados em unidades hospitalares que possuem ventiladores mecânicos, como UTIs, emergências, salas de recuperação ou unidades de pronto atendimento. O perfil mais comum é de pacientes em coma profundo (grau 3 na escala de Glasgow), com causa conhecida e dependentes de ventilação mecânica.
A detecção desses pacientes acontece principalmente de duas formas: via administrativa, por meio do controle diário das internações e laudos de tomografia; ou de forma ativa, pelo contato diário do coordenador com as unidades que podem gerar potenciais doadores, seja por visita presencial ou contato telefônico.
As Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) desempenham papel fundamental nessa fase, realizando visitas sistemáticas nas unidades onde se encontram pacientes críticos, pelo menos duas vezes ao dia.
Diagnóstico de morte encefálica
A morte encefálica é definida como a perda completa e irreversível das funções encefálicas, incluindo o tronco cerebral, que controla funções vitais como respiração, batimentos cardíacos e temperatura corporal. Para sua constatação, é necessário seguir um protocolo rigoroso estabelecido por lei.
O diagnóstico segue critérios específicos determinados pelo Conselho Federal de Medicina e inclui:
Dois exames clínicos que demonstrem coma aperceptivo, ausência de reflexos do tronco cerebral e apneia
Exames realizados por dois médicos diferentes, não envolvidos com equipes de remoção ou transplante
Pelo menos um dos médicos deve ser neurologista ou neurocirurgião
Um exame complementar que comprove ausência de atividade cerebral, perfusão sanguínea ou atividade metabólica
O intervalo entre os exames clínicos varia conforme a idade do paciente (de 6 a 48 horas). Além disso, a família deve ser informada sobre o início do protocolo e pode designar um médico de sua confiança para acompanhar a realização dos exames.
Autorização da família
Após a confirmação da morte encefálica, a família é notificada e consultada sobre a possibilidade de doação. Conforme a legislação brasileira, mesmo que a pessoa tenha manifestado em vida o desejo de ser doadora, a decisão final sempre cabe à família.
A entrevista familiar é conduzida preferencialmente em ambiente calmo, com todas as pessoas sentadas e acomodadas. A equipe médica deve comunicar de forma clara e objetiva que a pessoa está morta e que, nessa situação, os órgãos podem ser doados para transplante.
Podem autorizar a doação os parentes de primeiro ou segundo grau (pais, filhos, avós, netos, irmãos) ou cônjuge/companheiro em união estável, na presença de duas testemunhas. A abordagem busca oferecer a oportunidade de transformar a tragédia da perda em um ato nobre que pode salvar outras vidas.
Remoção e transporte dos órgãos
Uma vez obtida a autorização familiar, inicia-se rapidamente o processo de remoção dos órgãos. Equipes especializadas e habilitadas pelo Sistema Nacional de Transplantes realizam a cirurgia de retirada, mantendo a integridade e aparência física do doador.
Após a remoção, os órgãos são acondicionados em recipientes específicos seguindo normas rigorosas para preservação:
Embalagem primária em contato direto com o órgão
Duas embalagens secundárias intermediárias
Embalagem terciária externa preenchida com gelo suficiente para manter a temperatura adequada
O tempo para retirada e preservação varia conforme o órgão: coração e pulmões têm tempo máximo de preservação de 4-6 horas; rins até 48 horas; fígado e pâncreas entre 12-24 horas. Esse fator temporal exige uma logística precisa, especialmente quando receptor e doador estão em localidades distantes.
O transporte é regulamentado pela ANVISA através da resolução RDC 66/09, que estabelece processos para garantir qualidade, integridade e segurança dos órgãos durante todo o trajeto até chegarem ao centro transplantador onde está o receptor selecionado.
Critérios para seleção e compatibilidade dos receptores
A distribuição de órgãos para transplantes segue um processo rigoroso que garante transparência e equidade. Para entender como funciona essa seleção, é necessário conhecer os critérios que determinam quem receberá o órgão disponível.
Como funciona a lista única de espera
A lista para transplantes no Brasil é única e gerenciada pelo Sistema Nacional de Transplantes, valendo tanto para pacientes do SUS quanto da rede privada. Essa lista é organizada por estado ou região, impossibilitando que uma pessoa conste em mais de uma lista.
A inscrição é realizada pelo próprio médico ou equipe que acompanha o paciente, através do Sistema de Gerenciamento de Lista do Ministério da Saúde. Os pacientes concorrem aos órgãos doados no estado em que estão inscritos, podendo receber órgãos de outros estados apenas em casos de urgência.
A alocação (posição) dos pacientes na lista varia conforme o órgão necessário:
Para fígado: critério de gravidade da doença, calculado por exames laboratoriais específicos
Para coração, pulmão, pâncreas e córneas: critério cronológico (tempo de lista)
Para rim: critérios imunológicos (compatibilidade HLA)
Não é permitida a inscrição de um mesmo receptor em mais de um estado simultaneamente, mas é possível solicitar transferência sem perda de pontuação.
Critérios de urgência e compatibilidade
Primeiramente, a compatibilidade sanguínea é essencial em todos os casos. Além disso, são considerados critérios como compatibilidade de peso e altura, especialmente para órgãos como coração e pulmão.
Quando os critérios técnicos são semelhantes, a ordem cronológica funciona como critério de desempate. No entanto, pacientes em estado crítico recebem prioridade devido à sua condição clínica.
Situações que determinam prioridade na fila incluem:
Impossibilidade total de acesso para diálise (doentes renais)
Insuficiência hepática aguda grave (doentes do fígado)
Necessidade de assistência circulatória (pacientes cardiopatas)
Rejeição de órgãos recém-transplantados
Cada órgão possui um tempo máximo diferente para ser retirado e doado (tempo de isquemia fria): coração e pulmão têm prazo de 6 a 8 horas; fígado até 12 horas; e rim até 24 horas.
O que é o teste de crossmatch
O crossmatch é um teste fundamental que detecta a presença de anticorpos pré-formados específicos contra antígenos do doador. Funciona como uma simulação do transplante em laboratório, sendo crucial para determinar a compatibilidade entre doador e receptor.
O procedimento envolve a mistura de uma amostra de sangue do receptor com uma do doador para observar se há aglutinação das células sanguíneas. A presença dessa aglutinação indica incompatibilidade, o que pode resultar em sérias complicações.
Quando positivo, o teste representa uma contraindicação à realização do transplante, pois indica que o receptor tem condições para atacar as células do doador . Existem diferentes tipos de testes de crossmatch: o direto, realizado com sangue do doador e receptor, e o indireto, que envolve soro do receptor e células do doador.
Para transplantes renais, o crossmatch é particularmente importante, sendo realizado para verificar se o sistema imune reagirá contra o órgão. Outros exames complementares incluem o HLA, que avalia a compatibilidade genética, e o Painel de Reatividade de Anticorpos (PRA), que analisa a probabilidade de rejeição.
O que acontece após a doação
Após a captação dos órgãos do doador, inicia-se uma corrida contra o tempo para garantir que eles cheguem aos receptores em condições ideais para o transplante. Este processo envolve uma série de procedimentos rigorosos que asseguram a transparência e a eficácia do sistema.
Destino dos órgãos doados
Os órgãos doados são destinados aos primeiros pacientes compatíveis que aguardam na lista única da Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado. Este sistema é controlado pelo Sistema Nacional de Transplantes e supervisionado pelo Ministério Público, garantindo justiça na distribuição.
A Central de Transplantes determina o destino de cada órgão seguindo critérios objetivos:
Gravidade da doença do receptor
Tempo de espera na lista
Compatibilidade biológica entre doador e receptor
Vale ressaltar que a família do doador não pode escolher os receptores dos órgãos, pois essa seleção é feita exclusivamente pela Central de Transplantes através do sistema informatizado que gerencia as listas.
Acompanhamento dos receptores
Após o transplante, os receptores necessitam de acompanhamento médico rigoroso para monitorar a adaptação ao novo órgão. Inicialmente, o paciente é monitorado na unidade de terapia intensiva, com avaliação contínua dos sinais vitais e função do órgão transplantado.
Os medicamentos imunossupressores são fundamentais nesta fase, pois previnem a rejeição do órgão. No entanto, estes medicamentos podem aumentar o risco de infecções, diabetes e disfunção renal, exigindo monitoramento constante.
A rejeição, quando ocorre, pode manifestar-se logo após o transplante ou anos depois. Os sintomas da rejeição aguda incluem febre, calafrios, náusea e alterações na pressão arterial. Com o tempo adequado, aproximadamente 80% dos pacientes retornam ao nível de risco de infecção anterior ao transplante após seis meses.
Como a família do doador é informada
Por questões éticas e legais, não é permitido que a família do doador saiba para quem os órgãos foram doados. A legislação brasileira estabelece que tanto o paciente transplantado quanto o doador devem permanecer no anonimato.
No entanto, existem casos excepcionais, como o de Ramom Mateus e Sandra Maria, onde circunstâncias específicas permitiram o contato entre receptor e família do doador. O decreto 9.175/2017 veta o repasse de informações entre doadores e receptores no caso de doação post mortem, mas coincidências e conhecidos em comum por vezes possibilitam encontros não planejados.
Para doadores de medula óssea, existe uma política diferente: após 18 meses, é permitido o contato desde que ambas as partes concordem e o estado de saúde do receptor esteja estável.
Aspectos legais e éticos da doação de órgãos
A doação de órgãos no Brasil está cercada por um arcabouço legal e ético que visa proteger todos os envolvidos no processo. Diversos aspectos determinam como funciona esse complexo sistema, fundamentado em leis específicas e princípios bioéticos.
O que diz a legislação brasileira
A Lei nº 9.434/1997, conhecida como Lei dos Transplantes, é o principal instrumento legal que regulamenta a doação de órgãos no Brasil. Esta legislação estabelece os critérios para a remoção, preservação e transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Com as modificações posteriores, especialmente pela Lei nº 10.211 de 2001, foram estabelecidas diretrizes mais claras sobre o consentimento para doação.
Conforme a lei atual, a doação de órgãos é sempre gratuita e voluntária, sendo proibida qualquer forma de comercialização. Além disso, a legislação determina que todos os procedimentos devem ser realizados por estabelecimentos e equipes previamente autorizados pelo Sistema Único de Saúde.
Consentimento informado e papel da família
No Brasil, o modelo adotado é o do consentimento informado, no qual a família tem papel decisivo. Mesmo que uma pessoa manifeste em vida o desejo de ser doadora, a decisão final cabe sempre aos familiares. Segundo o artigo 4º da Lei dos Transplantes, a retirada de órgãos depende exclusivamente da autorização do cônjuge ou parente até segundo grau, com documento assinado por duas testemunhas.
Aproximadamente 40% das famílias recusam a doação, tornando este o maior obstáculo para o aumento dos transplantes no país. Por esta razão, especialistas recomendam que as pessoas comuniquem expressamente seu desejo aos familiares.
Atualmente, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que propõem a adoção do modelo de consentimento presumido, no qual todos seriam considerados doadores, a menos que manifestassem expressamente o contrário.
Mitos sobre a integridade do corpo
Um dos principais mitos que dificulta a doação é o receio da desfiguração do corpo. No entanto, a remoção dos órgãos é realizada por procedimento cirúrgico sem mutilação, permitindo que o corpo seja velado normalmente, inclusive com caixão aberto.
Mesmo na doação de órgãos como os olhos, são colocados globos no lugar para manter a aparência normal do falecido. Todo o processo é conduzido com extremo respeito e cuidado, garantindo a dignidade do doador.
Outro mito comum envolve crenças religiosas. Contrariamente ao que muitos pensam, a maioria das religiões apoia a doação de órgãos, considerando-a um ato de caridade e solidariedade.
Conclusão
A doação de órgãos representa uma das maiores expressões de solidariedade humana, capaz de transformar momentos de perda em oportunidades de vida. Portanto, conhecer detalhadamente todo processo, desde requisitos até procedimentos legais, torna-se fundamental para tomar decisões conscientes sobre esse tema tão importante.
O Sistema Nacional de Transplantes brasileiro garante um processo transparente e justo, assegurando que os órgãos doados cheguem aos receptores mais necessitados. Dessa forma, cada pessoa que decide ser doadora contribui diretamente para reduzir as mais de 50.000 vidas que aguardam na fila por um transplante.
Finalmente, comunicar aos familiares o desejo de ser doador constitui passo decisivo, pois são eles que autorizam a doação após o falecimento. Lembre-se: um único doador pode salvar ou melhorar a qualidade de vida de até oito pessoas diferentes, multiplicando esperança através de um ato genuíno de amor ao próximo.