Nos últimos anos, uma mudança sutil, mas significativa, vem transformando a forma como nos vestimos para velórios no Brasil. Se antes o preto era a cor incontestável do luto, hoje o branco e outros tons claros começam a ganhar espaço, carregando novos significados e resgatando tradições antigas. Essa escolha vai além de uma simples questão estética: ela reflete espiritualidade, respeito e uma nova maneira de encarar a despedida. Neste guia, exploramos o simbolismo por trás das roupas claras, suas origens culturais e religiosas, e como essa tendência vem sendo incorporada tanto em cerimônias íntimas quanto em despedidas de figuras públicas.
O que significa usar roupas claras em velório
Em nosso país, tradicionalmente associamos a cor preta ao luto. Entretanto, cada vez mais vemos pessoas optando por roupas claras em velórios, especialmente o branco. Esta escolha vai muito além de uma simples preferência estética — carrega significados profundos relacionados à espiritualidade e ao respeito pelo ciclo natural da vida.
Símbolo de luz e paz
Quando optamos por roupas claras em um velório, estamos transmitindo uma mensagem de luz e paz em um momento de despedida. O branco, em particular, simboliza a pureza e a claridade, contrapondo-se à escuridão geralmente associada à morte . , como na Índia, China e Japão, o branco é tradicionalmente a cor do luto, representando a necessidade de silêncio, reflexão e tranquilidade em momentos difíceis .
No Brasil, essa prática está começando a ganhar espaço, principalmente em contextos de mortes violentas, onde o branco é utilizado como um pedido de paz. A escolha de roupas claras representa uma perspectiva mais esperançosa sobre a morte, compreendendo-a não como um fim definitivo, mas como uma passagem.
Diferente do preto, que costuma simbolizar a tristeza, a escuridão e a ausência de luz na cultura ocidental, as roupas claras transmitem a ideia de que a morte não é necessariamente um momento apenas de sofrimento, mas também de transcendência.
Conexão com a espiritualidade
O uso de roupas claras em velórios possui forte conexão com a espiritualidade, especialmente nas religiões de matriz africana. , por exemplo, o branco é a cor associada a Oxalá, divindade central da religião. Esta divindade rege o início e o final de todos os ciclos, simbolizando paz , pureza e espiritualidade .
Esse costume foi evidenciado no velório da cantora Preta Gil, realizado em uma sexta-feira, dia tradicionalmente dedicado a Oxalá nas religiões de matriz africana. Familiares e amigos atenderam ao pedido da própria cantora de comparecerem vestidos de branco. A escolha das roupas brancas não foi apenas uma questão estética, mas representou uma visão espiritual onde a morte não é um fim, apenas uma passagem para outro ciclo.
Para as religiões de matriz africana, o luto representado pela cor branca não é triste ou pesaroso, nem indica a finitude da vida. Pelo contrário, simboliza transição, tanto de etapas na vida quanto de etapas pós-vida. Assim como o branco é usado no início da vida religiosa no candomblé, também é usado nas cerimônias fúnebres, reforçando a ideia de continuidade e renovação.
Expressão de respeito e serenidade
Vestir-se adequadamente para um velório é uma forma de expressar respeito não apenas pelo falecido, mas também pelos familiares enlutados. A escolha das roupas claras comunica empatia e solidariedade de maneira serena e delicada.
Em algumas culturas, o branco representa purificação espiritual e um gesto de reverência à transição da alma ao mundo ancestral. Na tradição afro-brasileira, vestir branco em cerimônias de despedida não representa fraqueza ou tristeza, mas sim luto, purificação espiritual e um gesto de reverência à transição da alma.
Além disso, as roupas claras em velórios podem criar um ambiente de maior acolhimento e conforto para os familiares. Em vez da sobriedade e peso do preto, as cores claras trazem uma sensação de leveza e serenidade, ajudando a amenizar o peso do momento de despedida.
Dessa forma, o uso de roupas claras em velórios torna-se uma expressão silenciosa, mas poderosa, de compaixão em tempos difíceis. Esta escolha reflete uma compreensão mais ampla da morte, não apenas como perda, mas como transformação e continuidade da essência espiritual da pessoa que partiu.
A origem do costume: religiões e tradições
A tradição de vestir branco em momentos de despedida tem raízes profundas em diversas culturas e religiões ao redor do mundo. Enquanto o ocidente adotou o preto como símbolo de luto após a Rainha Vitória do Reino Unido, que vestiu essa cor por 40 anos após a morte de seu marido em 1861, outras tradições seguiram caminhos diferentes.
Influência do Candomblé e Umbanda
Nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, o branco sempre foi a cor tradicional do luto. Esta tradição cultural, trazida pelos africanos durante a diáspora forçada da escravidão, manteve-se viva nos terreiros brasileiros e, aos poucos, começa a influenciar práticas além desses espaços.
No Candomblé, a partir da cultura Yorubá que se reflete na tradição Nagô, o branco representa o luto de maneira completamente diferente da visão ocidental. Para essa cultura, o luto não é triste nem pesaroso, tampouco indica o fim da vida. Pelo contrário, simboliza transição de etapas na vida e pós-vida.
Quando um iniciado no Candomblé falece, obrigatoriamente é sepultado com roupas brancas. Em todos os ritos fúnebres, o branco fosco, sem brilhos e com o máximo de simplicidade, é indispensável. O ritual funerário do candomblé é chamado de axexê, enquanto no Batuque (religião de matriz africana praticada no Sul do Brasil) é conhecido como Aressum ou Eressum.
Oxalá e o branco como cor sagrada
Oxalá é o grande orixá da criação e, em sua honra, os iniciados no candomblé vestem-se de branco todas as sextas-feiras. Este hábito dos terreiros disseminou-se há muito tempo na cultura brasileira, extrapolando o significado religioso.
O branco é a cor que simboliza a atmosfera e o próprio Oxalá, o maior entre todos os orixás, aquele que recebeu de Olodumare a missão de criar o mundo. Conforme explicam os babalorixás, “o branco é sua cor pelo fato de preceder o nascimento e por estar conectado à concepção, sendo o grande provedor do poder procriador masculino”.
No momento da alvorada, exatamente quando a abóbada celeste reaparece, faz-se o culto a Oxalá. Um momento em que o céu está completamente vazio de cores, mas pleno em potencial de manifestação. Este instante simboliza e revive a criação do universo, que remete ao silêncio absoluto e de profunda proximidade com o sagrado.
Tradições orientais e africanas
A utilização do branco como cor de luto não é exclusiva das religiões afro-brasileiras. Em várias culturas orientais, esta tradição também está presente:
Na Índia, China e Japão: O branco é tradicionalmente usado como manifestação de luto
Nos ritos africanos : Os tecidos sempre tiveram grande valor, sendo muitas vezes utilizados como moeda corrente
Na Costa do Marfim: Existe o hábito, principalmente entre os mais idosos, de preparar o próprio funeral armazenando tecidos de boa qualidade
No continente africano, a relação com os tecidos vai além da vestimenta – eles são considerados uma segunda pele. Metaforicamente, entende-se que “o fio que tece o tecido é o mesmo fio que tece a vida, com sua sucessão de idas e voltas num determinado ciclo de existência”.
Ademais, em culturas como a dos povos Lobi, no Burkina Faso, os funerais são celebrações onde música, dança e cores se misturam em uma celebração da vida que passou. O branco, neste contexto, não representa apenas tristeza, mas também renascimento e continuidade.
Portanto, ao vestirmos branco em velórios, estamos resgatando tradições milenares que enxergam a morte não como fim, mas como passagem, transição e continuidade do ciclo natural da existência.
Roupas claras vs. roupas pretas: o contraste cultural
O contraste entre as roupas claras e escuras em velórios reflete não apenas diferenças culturais, mas também visões distintas sobre a morte e o processo de luto. Enquanto algumas culturas priorizam cores sóbrias, outras optam por tons que representam purificação e transição.
Por que se usa preto em velório?
A tradição do preto como símbolo de luto no ocidente tem raízes históricas profundas. Registros indicam que essa prática remonta ao Império Romano (27 a.C – 476 d.C), quando as famílias enlutadas vestiam a chamada “”, uma vestimenta escura que simbolizava o pesar. Além disso, acreditava-se que essas roupas escuras impediriam que o falecido voltasse para assombrar os vivos .
Entretanto, o uso generalizado do preto como símbolo de luto ganhou força no século XIX, especialmente após 1861, quando a Rainha Vitória do Reino Unido passou a vestir-se exclusivamente de preto após a morte de seu marido, o Príncipe Alberto. Durante os 40 anos seguintes até sua própria morte, ela manteve o luto rigoroso, influenciando fortemente as práticas ocidentais.
Posteriormente, em 1947, os como cor oficial do luto no Ocidente ao promulgar a “Pragmática de luto e cera”, estabelecendo normas rigorosas para o sepultamento cristão. O preto passou a simbolizar a ausência de luz, a tristeza e o vazio deixado pela perda .
Mudança de percepção sobre o luto
A forma como lidamos com a morte e o luto tem passado por transformações significativas. No passado, a morte era um evento familiar, onde o moribundo despedia-se tranquilamente, rodeado por parentes e amigos, até mesmo crianças. Os rituais incluíam velar o corpo em casa, com janelas fechadas, velas acesas e espelhos cobertos.
Por outro lado, na sociedade contemporânea, a morte foi deslocada para ambientes hospitalares, muitas vezes em UTIs isoladas, longe do convívio familiar. Os rituais tornaram-se mais discretos e o luto, antes expressado publicamente, agora é contido, com a expectativa de que o enlutado mantenha autocontrole para “não perturbar” os outros.
Dessa forma, práticas como a cremação têm crescido em popularidade, não apenas por razões ecológicas, mas também como uma maneira de “fazer desaparecer e esquecer tudo o que resta do corpo”. A chamada “morte domada” que existiu até meados do século XIX foi substituída pela “morte interdita”, onde o evento é visto com vergonha e repugnância.
A cor que representa saudade em diferentes culturas
As cores do luto variam significativamente ao redor do mundo, refletindo como cada cultura compreende e processa a morte:
Preto: Predominante no Brasil e na maioria das culturas ocidentais, representa a falta de luz, tristeza e introspecção
Branco: Utilizado na Índia, China e Japão, simboliza palidez, apatia e a necessidade de silêncio e reflexão
Amarelo: No Egito, associado às folhas secas que caem, simbolizando as lágrimas derramadas pela perda
Vermelho: Na África do Sul, utilizado em cerimônias fúnebres para celebrar a vida do falecido e sua jornada espiritual
Azul-celeste: Na Síria e no Irã, relacionado à cor do céu, considerado o lugar onde as almas dos falecidos residirão
Roxo: Antigamente usado na Tailândia e em partes do ocidente, simboliza tristeza profunda e dor, embora esteja em desuso
Progressivamente, no Brasil, o uso de roupas claras em velórios vem ganhando espaço, principalmente em casos de mortes decorrentes de violência, onde o branco surge como um pedido de paz. Esta mudança representa uma nova perspectiva sobre o luto, mais alinhada com a celebração da vida que passou do que com o sofrimento pela perda.
Casos famosos que reforçaram o uso do branco
Nos últimos anos, casos notáveis de celebridades brasileiras têm contribuído para popularizar o uso de roupas claras em velórios. Estas cerimônias de despedida de figuras públicas ajudam a disseminar novas formas de expressar o luto, influenciando costumes e tradições.
Velório de Preta Gil
O velório da cantora Preta Gil, realizado em julho de 2025 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, chamou atenção pela predominância do branco nas vestimentas dos presentes. Vários famosos e amigos da artista escolheram roupas brancas para a cerimônia, respeitando sua fé no Candomblé, religião na qual o branco é a cor do luto e da morte.
Segundo relatos, a própria Preta havia solicitado que os presentes usassem branco, cor que no Candomblé representa Oxalá, orixá associado à paz, serenidade e espiritualidade. Vale ressaltar que o velório ocorreu numa sexta-feira, dia especialmente dedicado a Oxalá.
Entre os que aderiram ao vestuário branco estavam Francisco Gil (filho), Alane Dias, Janja Lula da Silva, Malu Mader, Claudia Abreu e Alice Wegmann. Alguns amigos como O Kanalha, Malu Mader e Jude Paulla foram além e usaram camisetas brancas estampadas com a imagem da cantora.
Velório de Arlindo Cruz
Outro caso emblemático foi o velório do sambista Arlindo Cruz em agosto de 2025. A família fez um pedido especial para que todos comparecessem vestindo roupas claras como “símbolo da luz e da alegria que ele espalhou por toda a sua vida”.
A cerimônia, realizada na quadra do Império Serrano, seguiu o formato de gurufim, tradição ancestral da cultura africana. Durante o evento, seu filho Arlindinho tocou cavaquinho e cantou sucessos do pai, incluindo “O Show Tem Que Continuar”, afirmando que a despedida aconteceu exatamente como o pai gostaria.
A escolha das cores claras teve um significado simbólico representando a alegria e a energia de quem era homenageado, contrapondo-se ao luto tradicional.
Outros velórios de famosos que adotaram o branco
Essa tendência vem crescendo em outros velórios de personalidades brasileiras, especialmente entre aqueles ligados às religiões de matriz africana. A prática, antes restrita aos terreiros, gradualmente ganha espaço em cerimônias públicas.
A adoção de roupas claras em velórios de famosos não apenas respeita crenças individuais, mas também contribui para uma visão mais ampla sobre o luto, celebrando a vida que passou em vez de apenas lamentar a perda.
Como escolher a roupa certa para um velório moderno
Escolher vestimentas apropriadas para um velório que adota o costume moderno de roupas claras requer sensibilidade e bom senso. Afinal, mesmo com a mudança nos códigos de cores, o respeito continua sendo fundamental.
Tons claros mais usados
Ao optar por roupas claras em um velório, considere estas opções:
Branco: A escolha mais tradicional, especialmente em cerimônias com influência das religiões de matriz africana
Bege e tons pastéis: Alternativas discretas que mantêm a sobriedade necessária
Cinza claro: Uma transição suave entre o tradicional e o moderno
Os tecidos devem ser preferencialmente foscos, sem brilhos excessivos. Linho, algodão e tecidos naturais são escolhas adequadas pela discrição que oferecem.
Evite exageros e estampas
Mesmo usando cores claras, é essencial manter a discrição. Evite roupas justas, decotes, saias curtas e peças muito casuais como jeans rasgados ou camisetas estampadas. As estampas, quando presentes, devem ser discretas e em tons neutros.
Quanto aos acessórios, mantenha-os minimalistas. Joias pequenas e discretas são aceitáveis, porém evite peças que façam barulho ou chamem atenção demasiada.
Roupas claras e respeito no luto
O uso de roupas claras não diminui a seriedade do momento. Portanto, mantenha o celular no silencioso, fale em tom baixo e seja discreto na maquiagem e no perfume. O conforto também é importante, principalmente se o velório for longo.
Ademais, caso não tenha certeza sobre o código de vestimenta, consulte previamente a família ou amigos próximos do falecido.
Conclusão
Ao longo deste artigo, exploramos uma tendência significativa que ressignifica nossas tradições funerárias brasileiras. A escolha de roupas claras em velórios, especialmente o branco, reflete uma mudança profunda na maneira como encaramos a morte. Esta prática, certamente enraizada nas religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda, traz uma perspectiva mais luminosa para momentos de despedida.
Aprendemos que o branco, longe de diminuir o respeito pelo momento, simboliza paz, transcendência e continuidade. Diferentemente do preto tradicional ocidental, as vestes claras celebram a passagem em vez de apenas lamentar a perda. Assim, quando vestimos branco em um velório, honramos não apenas a pessoa que partiu, mas também sua jornada espiritual.
Ademais, observamos como personalidades brasileiras têm contribuído para normalizar este costume. Os velórios de figuras como Preta Gil e Arlindo Cruz demonstraram publicamente como as cores claras podem criar ambientes de despedida mais acolhedores e esperançosos, alinhados com suas crenças pessoais.
A escolha entre preto e branco vai além de uma simples preferência estética. Portanto, representa visões distintas sobre a morte: enquanto um simboliza a ausência e o vazio, o outro celebra a transição e a continuidade da essência espiritual. Esta dualidade evidencia como os rituais funerários são profundamente culturais e estão em constante evolução.
Independentemente da escolha das cores, o respeito e a discrição permanecem fundamentais. Consequentemente, ao optar por tons claros em um velório, devemos manter a sobriedade necessária, evitando exageros e mantendo o foco no verdadeiro propósito do momento: honrar a memória de quem partiu.
Finalmente, esta mudança nos convida a refletir sobre nossas próprias concepções de morte e luto. Possivelmente, ao abraçarmos tradições mais diversas e integrarmos diferentes visões culturais, podemos encontrar formas mais saudáveis e significativas de processar nossas perdas. O branco nos lembra que, mesmo nos momentos mais difíceis, existe espaço para luz, paz e esperança.